Ninguém está só todos os dias   

Os vizinhos discutiam se ficavam por lá, ou acorriam a algum parente à procura de um sofá-cama. Evelyn ouvia querendo afastar as palavras que lhe amassavam o peito. Era orgulhosa demais para pedir um canto na casa de sua mãe. Se você embuchou que se vire com a cria, estilhaçava em seu útero. Os carretos lotavam a rua apinhados de colchões, móveis e geladeiras. Não se ouvia despedida alguma, apenas um vamos nos falando, te ligo depois, promessa de boca para fora. Com uma margem vergonhosa, a lama vencia a vassoura de Evelyn. Sua avó já havia falado, deixa de ser acanhada. Preferiu, no entanto, entrar na casa, antes que lhe perguntassem, o que você está fazendo aí parada? 

À noite, a rua vazia ampliava o barulho da chuva, sem moleques e motos aos berros. Pediu a filha pequena que trouxesse um balde, enquanto puxava o rack da televisão para longe da parede. Para isso talvez servissem os homens, arrumar as lajes e consertar goteiras. A menina voltou correndo depois de um trovão nervoso, sem balde nenhum. Agarrou a perna da mãe que se amedrontou com a ideia de que os barulhos levassem a casa morro abaixo. Evelyn abraçou cabeça da menina, pediu quase sussurrando que se acalmasse. A filha foi diminuindo até entrar por inteira no abraço da mãe. 

Ainda faltavam muitos móveis na casa, mas o salário como vendedora de roupas já rendera ao menos fogão, geladeira televisão. Dormiam em um colchão de espuma côncava na altura das nádegas. As roupas moravam dentro de caixas de papelão que, aos poucos, se abriam nas laterais. Não era coisa que se pensasse naquela hora, mas havia muitas as prestações a pagar. Uma besta por ter confiado em Mauro. Depois de estourar o limite do cartão com o conserto da moto, ainda pediu que entendesse, não tinha dinheiro para a pensão.  

— Mãe, estou com fome.  

Na cozinha, uma rachadura atravessava a parede. Evelyn mordeu os dedos ao ver o avanço. Um raio em câmara lenta, vencendo a argamassa, pronto a arrebentar tudo e a todos. Pegou dois ovos e o óleo que grudou seus dedos no plástico amassado. Alcançou a frigideira debaixo da pia, onde as roscas mal fixadas do encanamento vazavam a água engordurada das lavagens. Alguns pingos haviam escorrido pela frigideira, denunciados por uma auréola amarelada sobre o metal. Como Evelyn detestava aquilo. O duplo trabalho de lavar as panelas, o conserto pendente há meses, do qual só se lembrava ali de cócoras. Misturou os ovos na frigideira, um pouco de sal e mexeu-os com nervosismo. Uma casca pequena do ovo se escondeu em meio à clara que sumia no amarelo das gemas.  

Mas a chuva não se importava com nada e caía outra vez vigorosa após algumas horas de descanso. Com mais fôlego, resolveu invadir a cozinha de Evelyn através de novas brechas nascidas entre as telhas. Um estalo grave retumbou na sala, de vigas se partindo, ossos gigantes se acomodando de tensões. Outro barulho. Resoluto. No meio dos sons, um agudo estridente fez o contraponto às vibrações guturais no enorme segundo. 

Os ovos ainda estavam moles no instante em que Evelyn correu para a sala. Metade da parede que continha a janela jazia espatifada. Os tijolos desnudados e algumas vigas de ferro retorcido. A chuva invadia pela primeira vez os espaços internos da casa, sem licença alguma, formando linhas d’água que desapareciam por dentro do concreto. Evelyn gritou ainda mais ao ver entre as poças um fio vermelho, pequeno afluente em busca dos rios maiores, seguindo sua rota sinuosa. Sua nascente brotava perto de onde estaria a televisão.  Outro estalo trouxe abaixo algumas telhas mal equilibradas, vencidas pelo aguaceiro. A estranheza de olhar para o céu dentro de sua sala, fez Evelyn achar que tudo cabia dentro dela.   

Evelyn apenas percebeu Joseline quando esbarrou em seus braços ao tentar erguer a placa de cimento. Do outro lado, Edilson puxava vigas. O peso todo de seu corpo lançado para trás, as pernas firmadas como raízes de paineira. Lúcia gritava para a rua que os acudissem, enquanto buscava um ponto na parede tombada para encaixar suas mãos cheirando à cândida. Jaílson e Janderson pularam os entulhos e com a corda que usavam para amarrar geladeiras nos carros apinhados, passaram-na sob os apoios onde Edilson se esfolava.  Amanda, a filha de Joselina do fim da rua, sempre muito mal falada pela microssaia e bem quista pelos meninos, gritava no celular o endereço da casa, que viessem logo a bombeiro, a polícia, Jesus Cristo.  

Os minutos passavam e o peso do concreto insultava as força humanas, com uma austeridade quieta de rochedo no quebra-mar. Ninguém teria chamado Rosana, pois era sabida a sua língua de ofídeo, mas o café quente na garrafa térmica afastou qualquer má consideração. Servia a todos em copinhos de plástico e rezava em voz baixa ao pé dos escombros. Quando Evelyn desabou a chorar, Rosana e a dona Gilda envolveram-na com os braços, feito um bebê em um charuto de mantas. Os bombeiros chegaram aos montes com uma presteza quase constrangedora. Traziam corta-vergalhões, macacos hidráulicos e cordas.  Um, dois, três. Vamos de novo, comandava um bombeiro, seguido de grunhidos de esforço daquela gente toda.   

— Samira, minha filha, responde! 

A menina tinha um corte profundo nos supercílios e arranhões pelo braço esquerdo. Estava de cócoras dentro de um cruzamento de vigas de madeira e aço, que sustentavam telhas e entulhos. Um santuário. Dentro, Samira desacordada. O bombeiro recuou ao vê-la e juntou as mãos em prece. Outro tomou à frente e trouxe a menina no colo, que acordou com um sorriso luminoso, capaz que clarear toda a sala destroçada. Algumas pessoas de fora, disseram que a luz parecia uma lanterna acesa guardada em uma caixa aberta.  Evelyn correu para Samira, que já estava de pé, ao lado do bombeiro aturdido. Amanda perguntou se queria que ligasse para alguém da família. Dona Gilda ofereceu sua casa, fiquem por lá até se arrumarem. Ninguém está só todos os dias, Evelyn pensou, enquanto subia na ambulância junto com a filha, que brilhava quase radioativa. Ninguém está só todos os dias.  

Rosana serviu o último copinho de café para o bombeiro, que beijava seu rosário com fé suficiente para finalizar o turno.      

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